CRON NO CCBB: UMA NOITE DE CHUVA, ACASO E MÚSICA

Em 10 de agosto de 2011 eu prestigiei o concerto do grupo CRON realizado no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro. O diretor cronista, Prof. Dr. Marcos Nogueira, fez uma abertura relâmpago e em seguida, convidou alguns integrantes do grupo como: Maycon Lack (flauta), Rafaela Calvet (percussão) para se ajuntar a ele (Marcos) ao piano a fim de executarem a peça ESCALENOEDRO do jovem compositor Yahn Wagner. O trio começou a tocar de forma muito relax, com dose restrita de energia e concentração, no entanto, no meio da jornada sonora, a partitura do pianista Marcos desabou inesperadamente de cima da plataforma pianística fazendo com que ele exercitasse os reflexos humanos de malabarismos demasiado humanos. Marcos riu discretamente para todos, e propôs um recomeço. Aquele re-começo re-interpretativo foi condição de possibilidades para uma noite de vitalidade naquela estrada já percorrida, pois viajar é ter diferentes olhos para as mesmas paisagens. Aquele trio deu a volta por cima, arrancando aplausos calorosos, confiança e prestígio visual auditivo da platéia, então, eles seguiram confiantemente, pois “aquilo que não nos destrói, nos fortalece” dizia o filósofo Nietzsche. Em seguida, foi executada a peça CINERAMA para violino, trombone e piano do compositor Marcos Nogueira. Os intérpretes Tatiana Dumas (piano), Tais Soares (violino) e Marcos Botelho (trombone) exibiram profissionalismo, clareza sonora e dinamismo, pois quando olharam para a partitura, souberam solenemente conduzir as idéias na carruagem do ritmo, porque habitualmente elas não conseguem andar sozinhas. A outra composição contida na programação foi a peça PASSAGENS, do compositor Marcos Lacerda. Essa peça foi escrita apenas para um duo de clarineta baixo e vibrafone. Os músicos Thiago Tavares e Rafaela Calvet fizeram um excelente diálogo convergente que se estendeu musicalmente e dinamicamente em meio às variações de intensidade e densidade sonora que proporcionavam interesse e curiosidade sobre como seria a conclusão da peça. Lacerda construiu sua peça em moldes proustianos e saramaguianos (Marcel Proust e José Saramago), pois em ambos os autores, as frases crescem por dentro, pois dominam a arte da leveza e elasticidade das palavras. Grande expectativa também estava na obra de Neder Nassaro, chamada COLAPSO. Esta peça começou com um ataque fortíssimo do pianista Marcos Nogueira que simulou um tiro ao alto. Em seguida, o contrabaixista Cláudio Alves e a trompista Waleska Beltrami ao manusearem seus instrumentos em forma de esfrega-esfregas glissândicos, estimulava todos os nossos sentidos, fazendo-nos cogitar que ali no palco ocorria uma acirrada e disputada corrida de Fórmula I ou de aviões a beira de um ataque de “nervos”. Embora seja evidente que na hermenêutica sonora, uma mesma peça dá margem a várias interpretações, o mais importante foi que o criativo Nassaro soube cativar as expectativas. Ele soube conquistar a imaginação do ouvinte. Após a sensacional composição de Neder Nassaro, foi anunciada a execução da peça CAMERATA, para violino, flauta, clarinete, trombone, contrabaixo e piano do veterano Edino Krieger. Além da beleza sonora e da força da densidade interna que esta obra proporcionou, ela foi construída pensando na relação entre as partes e o todo. A interpretação deu-nos a impressão de estarmos diante de debate entre amigos, onde cada pessoa podia exercer a cidadania da ética do discurso herdando assim a terra dessas palavras que eram compartilhadas e realçadas pelos demais participantes naquela roda viva e fraterna que apontava para a execução de todos formando assim uma majestosa massa sonora. Edino Krieger, apesar da idade avançada, é um guardião da lucidez e bom gosto. No aforismo 209 do livro HUMANO DEMASIADO HUMANO (volume I) de Friedrich Nietzsche escreveu: “Alegria na velhice- O pensador ou artista que guardou o melhor de si em suas obras sente uma alegria quase maldosa, ao olhar seu corpo e seu espírito sendo alquebrados e destruídos pelo tempo, como se de um canto observasse um ladrão a arrombar seu cofre, sabendo que ele está vazio e que os tesouros estão salvos”. (NIETZSCHE, 2002, p. 141) Após a louvação a coletividade idealizada por Krieger, o diretor do grupo convidou gentilmente a sua ex-professora de composição Marisa Rezende para subir ao palco e ali, ambos se sentaram em duas cadeiras num espaço visual que me lembrou o famoso confessionário do Big Brother Brasil, pois a luz frontal, focalizava os rostos escavando as subjetividades daquele ex aluno e ex professora. Marisa Rezende ficou muito feliz em saber que naquela noite estava diante de um de seus primeiros alunos fruto das primeiras turmas da disciplina composição na ESCOLA DE MÚSICA DA UFRJ. A felicidade daquela mulher estava assentada no sublime fato de que o Marcos cresceu e subiu vários degraus na escada da existência, e isso, caiu como um singelo, gratificante e divino presente. “Retribui-se mal a um professor quando se permanece “o discípulo”. (NIETZSCHE, 2005, p. 128). Marisa de forma muito objetiva e panorâmica nos contou que em 1989 ela pediu apoio ao CNPQ para a formação e engajamento do grupo MÚSICA NOVA que tinha como objetivo executar e divulgar as peças dos alunos de composição e afins. Segundo ela, aqueles ensaios, concertos foram verdadeiros monumentos do tempo esculpidos em forma de debates, análises, reflexões teóricas, execuções de novas peças e intercâmbio de idéias entre várias pessoas que foram agentes portadores de criatividade emergente. Segundo Edgar Morin em seu livro A HUMANIDADE DA HUMANIDADE: “A criação nasce do encontro entre o caos genésico das profundezas psico-afetivas e a pequena chama da consciência. A criação é um jogo que se realiza a partir de uma aptidão organizadora (competência) que cataliza em mensagem, idéia, forma, tema musical o que era apenas tumulto, ruído, cacofonia”. (MORIN, 2005, p. 126) Marisa Rezende ressaltou que naquele período de atuação do grupo MÚSICA NOVA os compositores e intérpretes, se debruçavam com afinco em prol da gênese e ampliação de novas idéias, rompendo dessa forma, com o mito da inspiração divina imediata que todo artista genial possui. No aforismo 155 do livro HUMANO DEMASIADO HUMANO, Nietzsche faz uma breve reflexão sobre “a crença na inspiração”. Segundo ele: “Os artistas têm interesse em que se creia nas intuições repentinas, nas chamadas inspirações; como se a idéia da obra de arte, do poema, o pensamento fundamental de uma filosofia, caísse do céu como um raio de graça. Na verdade, a fantasia do bom artista ou pensador produz continuamente, sejam coisas boas, medíocres ou ruins, mas o seu julgamento, altamente aguçado e exercitado, rejeita, seleciona, combina; como vemos nas anotações de Beethoven, que aos poucos juntou as mais esplêndidas melodias e de certo modo as retirou de múltiplos esboços. [...] Todos os grandes foram grandes trabalhadores incansáveis não apenas no inventar, mas também no rejeitar, eleger, remodelar e ordenar. Ainda a inspiração – Quando a energia produtiva foi represada durante um certo tempo e impedida de fluir por algum obstáculo, ocorre enfim uma súbita efusão, como se houvesse uma inspiração imediata sem trabalho interior precedente, ou seja, um milagre. [...] O capital apenas se acumulou, não caiu do céu”. (NIETZSCHE, 2002, pp. 119-120) Antes de finalizar a sucinta exposição aquela compositora e professora aposentada assinalou em rápidas palavras que peça que seria executada em seguida, foi denominada ENTREMEIO porque se balizou sobre uma linha mestre basilar que deu vida a novas linhas convergentes no processo de costura daquele tecido sonoro. Essa obra foi concebida e idealizada para clarineta, trompa e piano. Todas as linhas internas foram costuradas até o esgarçar máximo, chegando ao limiar entre a loucura e ternura da alma, no entanto, a sensibilidade, maturidade e o bom senso foram agentes de contenção. Uma compositora experiente sabe escutar as sábias palavras de Nietzsche: “Muitos escritores esticam tanto seus pensamentos que estes se tornam pesados demais”. Finalmente ENTREMEIO foi tocada [...] Amazing sound....very subláime. Clap, clap e mais claps. Seguindo o mesmo fluxo estético sonoro proposto por Marisa Rezende, foi executado o TRIO, para clarineta, trompa e piano do neto compositor da família de som, Yahn Wagner. O concerto se encerrou de forma muito simples e discreta, sem glamour e sem exibicionismos de egos faciais, porém, toda a formalidade foi carregada de espiritualidade interna e profissionalismo externo, pois bons artistas também são aqueles que provocam sorrisos discretos e às vezes, imperceptíveis a olho nu. Em cada gesto, em cada fala marcada pela economia dos detalhes, nos mostrou que “cada música surge de um sentimento de vida, de uma forma de vida que é produzido pelo sentimento e concepções de formas de vida”. (RIHM, WOLFGANG, 2010, p. 295, in: Der geschockt Komponist) Encerro por aqui minhas palavras dando honra e parabenizando a todos os integrantes do grupo Cron dirigido por Marcos Nogueira, a Sala Cecília Meirelles sob a direção de João Guilherme Ripper, Ministério da Cultura, Governo do Estado do Rio de Janeiro, a iniciativa da SEC (Secretaria de Estado e Cultura), Petrobras, Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB Rio), Neder Nassaro, Marcos Lacerda e a grande Marisa Rezende (patrimônio-monumento vivo do ensino). Obrigado por nos proporcionar uma linda noite de sutis delírios de júbilo. Fraternalmente e musicalmente Joe Referências Bibliográficas ALVES, Rubem. A alegria de Ensinar. São Paulo: Ars Poetica Editora Ltda, 1994. GRISEY, Gérard. Zur Entstehung des Klanges... in: Mit Nachdruck: Texte der Darmstädter Ferien Kurse. Editado por Rainer Nonnenmann. Mainz: Schott Music GmbH & Co. KG, 2010. MORIN, Edgar. O método 5. A humanidade da humanidade: a identidade humana. Tradução de Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Editora Sulina, 2005. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Um livro para Espíritos Livres. Volume I. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. NIETZSCHE, Friedrich. Sabedoria Para Depois de Amanhã. Tradução: Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2005. RIHM, Wolfgang. Der geschockte Komponist, in: Mit Nachdruck: Texte der Darmstädter Ferien Kurse. Editado por Rainer Nonnenmann. Mainz: Schott Music GmbH & Co. KG, 2010.

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